__ Recentemente li o livro A traição do Eu: O medo da autonomia no homem e na mulher de Arno Gruen, e apercebi-me como de facto tendemos a gerir as nossas vidas de acordo com uma ideia de autonomia incongruente com o que ela realmente implica.
Segundo o autor, “a autonomia é o estado de integração em que uma pessoa se encontra em plena concordância com os seus sentimentos e as suas necessidades. (…) Da autonomia faz parte a capacidade de ter um Eu alicerçado no acesso a sentimentos e necessidades genuínos.” (págs. 17 e 18). Paradoxalmente, geralmente associamos a pessoa autónoma à pessoa independente, controlada, bem adaptada socialmente, por muito que esta pessoa possa não reconhecer qualquer sentimento de tristeza, zanga, medo, ou qualquer necessidade de proximidade, de conforto. Ao colocarmos este peso na ideia de autonomia, colocamo-nos necessariamente em conflito entre um Eu ideal (supostamente autónomo porque independente e controlado), favorecido pela sociedade ocidental actual, e o Eu real (genuinamente autónomo, mas não reconhecido socialmente como tal), que por vezes tem dores, que tem fragilidades, que precisa de proximidade e de conforto. Estranhamente, este é o Eu socialmente rotulado como fraco e dependente. Assim, quando puxamos o suposto lado da autonomia (portanto o independente e controlado), reprimimos a possibilidade de satisfação no contacto com a nossa realidade interna e a possibilidade de conforto na interdependência (no equilíbrio entre a proximidade e o isolamento). Criamos a fantasia que ou somos “autónomos” e fortes ou somos dependentes e fracos, sem percebermos que proximidade e autonomia não são incompatíveis, eu não preciso de me isolar para ser autónomo e posso retirar conforto na proximidade sem me tornar dependente. É muito importante percebermos que a nossa saúde mental não passa por nos adaptarmos às expectativas dos outros negligenciando-nos a nós próprios; a nossa saúde mental passa por encontrarmos, mantendo-nos próximos aos outros, um espaço para reconhecermos e cuidarmos das nossas emoções e necessidades.
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_ Na minha prática clínica tenho-me deparado com uma grande dificuldade dos meus pacientes em expressarem desacordo, mágoa, ressentimento, ou agirem de formas contrárias àquilo que sentem que são as expectativas ou desejos de outros significativos.
Ao explorar o que é que receiam que aconteça se se expressarem de forma congruente com o que estão a sentir, surge frequentemente o medo de perder o outro, que o outro não suporte a crítica ou o desacordo e que haja uma ruptura na relação. Um trabalho útil com estes pacientes é treinar a assertividade, explorando formas de nos afirmarmos perante estes outros significativos de uma forma cuidadosa que melindre o outro o menos possível; mas a realidade é que estes pacientes não deixam de ter algum fundamento no seu receio, frequentemente os primeiros movimentos de auto-afirmação são de facto mal recebidos do outro lado. A reflexão que vos venho propor é até que ponto é que esta reacção menos positiva do outro implica necessariamente perda ou, pelo contrário, potencia transformação da relação. Não sejamos utópicos, se introduzo uma dinâmica nova na relação (por exemplo expressar mágoa por a minha opinião não ter sido levada em conta numa decisão com implicações para os dois), não posso esperar que o outro mantenha a mesma postura, ele terá que digerir a novidade e precisaremos os dois de um período de ajustamento à nova dinâmica, ou de um período de negociação de uma terceira dinâmica, construída em conjunto, que responda de forma mais equilibrada às necessidades de ambos. Ou seja, preciso dar espaço ao outro para que ele me devolva o ponto de vista dele sobre a situação que desencadeou o problema, como é que ele lida com esta mudança no sistema que eu estou a propor, e que condições é que ele precisaria ter satisfeitas para conseguir de forma mais tranquila responder à minha necessidade (por exemplo, o outro poderia devolver que não se tinha apercebido que eu tinha uma opinião diferente, mas que de facto era importante para ele que eu estivesse confortável com a decisão e precisaria por isso que eu passasse a expressar as minhas opiniões com mais clareza para ele perceber que há ali uma opinião contrária que precisa ser levada em conta). E pensarão: “mas comigo isto não funciona assim, o outro não vai reagir tão bem”. Talvez tenham razão, é provável que a primeira reacção seja de defesa e de desagrado pelo comentário, mas lá está o tal período de ajustamento e de negociação, em que o treino de assertividade referido inicialmente tem um papel importante no mantermo-nos afirmativos das nossas necessidades e direitos por um lado, e ao mesmo tempo abertos a perceber o ponto de vista do outro, que elementos é que estão a dificultar a compreensão da mensagem de ambos os lados, e como é que podemos atingir um equilíbrio entre aquilo de que cada um não abre mão e no que estamos disponíveis para ceder. _ Quando penso em direitos humanos lembro-me imediatamente da dificuldade que muitas vezes temos em contemplar os nossos próprios direitos.
Quantas vezes ao longo do nosso desenvolvimento nos fomos perdendo de nós próprios, descurando as nossas necessidades, muitas vezes perdendo mesmo o contacto com elas, e habituámo-nos a viver em função de “deveres” que nos foram incutidos e de expectativas que sentimos que os outros nos colocam. Todos temos necessidades psicológicas fundamentais que precisam ser cuidadas: O direito ao afecto O direito à afirmação da nossa identidade O direito à diferença O direito ao respeito pelas nossas diferenças e pelas nossas fragilidades O direito a viver as nossas emoções: direito à tristeza, à alegria, à zanga, ao medo, à vergonha O direito a procurar proximidade/intimidade O direito a movimentos de autonomia O direito de procurar prazer O direito de dizer “não” O direito de nos protegermos e de nos defendermos de ataques, de abusos, de solicitações exageradas O direito a termos as nossas merdas O direito a expressarmo-nos de acordo com os nossos interesses e as nossas necessidades Neste dia mundial dos direitos humanos, aproveitemos para nos questionar quanto é que temos olhado para as nossas necessidades psicológicas mais fundamentais e quanto é que as temos visto e respeitado como direitos que são. Consciencializarmo-nos dos nossos direitos e respeitá-los é fundamental. Só na medida em que defendemos os nossos direitos, nos conseguimos disponibilizar para tranquila e genuinamente respeitar os direitos dos outros. Neste dia internacional para a tolerância, trago-vos um lado da tolerância talvez pouco contemplado.
Tolerância é frequentemente sentida como algo dirigido ao outro, com o outro como referência. Eu acho que é importante contemplar o lado do (in)tolerante, o que significa a (in)tolerância do lado de quem a pratica. Tolerância, na sua face mais visível, implica dar espaço ao outro para ser ele próprio, aceitar o outro nas suas diferenças. No lado menos visível, tolerância implica dar-se espaço a si próprio para se ser quem é, plenamente, aceitar-se nas suas vulnerabilidades, aceitar as suas próprias diferenças. Quando não me aceito nas minhas diferenças, nas minhas vulnerabilidades, fico intimidado com as diferenças dos outros, elas salientam as minhas próprias, obrigam-me a dar-lhes atenção. E então defendo-me, deste que me afronta quando me mostra que o diferente sou eu também. Projecto nele a responsabilidade pelos meus males e luto com unhas e dentes para não deixar trespassar qualquer resquício da minha insegurança. Estrangulo a possibilidade de diálogo, sem perceber que quem sufoca é o meu próprio eu, aquele que soluça cá dentro, apertado. Quando consigo arranjar coragem para olhar para os meus lados menos risonhos e dar espaço, presença às minhas dores, às minhas fragilidades, dou-me também espaço a mim para me aceitar na diferença, respeitar-me pelo que sou, permitir-me ser de forma mais tranquila e mais autêntica. E na medida em que me tolero e respeito mais a mim, melhor tolero e respeito o outro. No programa da RTP2 Onda-Curta passaram uma curta-metragem intitulada “Tout le monde dit je t’aime” (Toda a gente diz amo-te) que reflecte de uma forma muito interessante sobre o significado do amor aos 16 anos.
E fui ficando a questionar-me: O que é isto do amor? Como é que se lida com o “amo-te”? O giro da curta é que mostra duas adolescentes com perspectivas muito diferentes do “amo-te”: uma que acredita que a expressão tem significado e é forte, a apaixonada, que vive ela própria este sentimento; e a descrente, a quem nunca o disseram, e que defende que “amo-te” é como uma palavra mágica – não significa nada, toda a gente o diz, e ainda por cima tem a particularidade de encurralar, afinal de contas o que é que se responde a um “amo-te”que não seja “eu também”? E depois quando é que se pára? Temos que dizer “amo-te” para sempre? Como é que se sabe que se ama? Quando é que faz sentido dizê-lo? Há um tempo mínimo antes do qual é parvoíce? E se se espera demais? Não tenho resposta a estas questões. O que tenho é a imagem destas duas adolescentes a seguirem direcções opostas e a gritarem “Eu amo-te” uma à outra, à medida que se afastavam, com um sorriso, um prazer que transbordava por todo o corpo. E a realidade é que parece que, mais do que um pensamento, e estejamos nós a dizê-lo ou a recebê-lo, “amo-te” é um sentimento que percorre todo o nosso corpo com um misto de aperto e de euforia. “Amo-te” lê-se no corpo mais do que na mente. E é de facto mágico, como dizia a descrente, mas um mágico diferente, tão mágico que alguns o tememos, muitos o desacreditamos, mas todos nos deliciamos quando o recebemos daqueles que também nós amamos. “Não consigo lidar com o facto de se lhe expressar o que sinto vou magoá-lo/a”
A ideia de que expressar emoções desagradáveis ao outro, sobre o outro, implica magoá-lo é algo que os meus pacientes me trazem com frequência para as sessões. A possibilidade de magoar o outro é tão aversiva que parece haver uma preferência por anular a expressão das próprias emoções, mesmo que isso acarrete incoerência e sofrimento para o próprio. Esta dificuldade dos meus pacientes em serem coerentes com as suas emoções no relacionamento com os outros mexia particularmente comigo e debrucei-me a reflectir sobre o que é que me desconcertava nesta dificuldade tão comum. Comecei então a pensar, o que é isto de magoar o outro? Quando é que magoamos o outro? Magoar parece-me implicar uma certa desconsideração, uma forma descuidada de tratar o outro, seja no adoptar de uma postura agressiva, ou no adoptar de uma postura negligente. Diria que magoar implica não considerar o outro na equação. E a realidade é que não era isto que eu via tendencialmente nos meus pacientes, pelo contrário, parecia-me que equacionavam tanto o outro que se esqueciam de si próprios. E comecei a pensar… será de facto que magoamos os outros quando partilhamos, de uma forma cuidada, as nossas opiniões divergentes ou as nossas emoções menos agradáveis perante eles? E surgiu-me esta diferença: magoar ou entristecer? Se me apontam características menos positivas minhas, eu fico triste; se me dizem “já não sinto por ti o que sentia”, eu fico triste; se não partilham a mesma opinião que eu sobre um tema que me é querido, eu posso ficar triste também; mas magoada? Quando, por tanto engolirem o que pensam a meu respeito, explodem um dia e me mostram os meus defeitos de forma agressiva, eu fico magoada; quando me dizem “gosto de ti da mesma forma” mas toda a expressão não verbal, nomeadamente o afastamento ou a irritação, mostra o contrário, eu fico magoada; quando, por terem uma opinião diferente da minha num tema importante para mim, criticam a minha opinião de forma desrespeitosa, eu fico magoada. A diferença não está em expressar ou ocultar o que sentimos, a diferença está no cuidado que temos perante o outro quando o expressamos. E talvez alguns me possam dizer: “mas eu também não quero entristecê-lo/a”. Eu aí diria que podermos dar atenção às nossas tristezas e ficar a dar-lhes algum colo quando surgem é essencial para arrumarmos as nossas dores e podermos então abrir-nos a novas possibilidades. Por outro lado, ao ocultar verbalmente o que a nossa expressão corporal não consegue esconder, podemos estar já a magoar. |
Autora
Joana Fojo Ferreira Acompanhe as atualizações nas redes sociais
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